Os transtornos mentais são consequĂȘncia de uma vulnerabilidade biológica herdada pelo ser humano, da influĂȘncia que existe dentro das famĂlias e dos fatores ambientais, disse o professor Jair Mari, do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ao participar hoje (6) do 39Âș Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Fortaleza.
Com a pandemia, os fatores de estresse ambientais tornaram-se muito mais importantes, principalmente nos grandes centros urbanos. "Porque nós vivemos um momento de reclusão, de afastamento, de ameaça, de mortes. VĂĄrias situações inusitadas. Costumamos dizer que foi um dos maiores experimentos psicológicos que a humanidade jĂĄ enfrentou", afirmou Mari.
Na interação entre fatores biológicos e ambientais, com o peso pendendo para o crescimento dos fatores ambientais, é esperada uma epidemia de transtornos mentais, disse o professor, em entrevista à AgĂȘncia Brasil. Segundo Mari, os problemas mais emergentes envolvem vĂĄrias situações, e os transtornos mentais jĂĄ estavam entre as condições em que normalmente havia crescimento da sobrecarga das doenças.
"Enquanto se tem condições, como câncer e doenças cardiovasculares, que estão reduzindo a incapacitação, mesmo antes da pandemia, a incapacitação relacionada com os transtornos mentais e, em particular a depressão, jĂĄ estavam aumentando", disse o psiquiatra. Por isso, essa sobrecarga, "muito provavelmente", tende a aumentar ainda mais. São esperados vĂĄrios transtornos mentais relacionados com o que aconteceu e que tenderão a crescer, acrescentou.
Com o confinamento, os adolescentes, que necessitam do contato social, do apoio dos pais, passaram a usar a mĂdia social com mais intensidade, o que trouxe riscos, como o sex bullying, a rejeição virtualmente imaginada ou real e sanções dentro de um grupo. O professor lembrou que, para um adulto, dois anos passam mais rapidamente do que para adolescentes, para os quais aquele perĂodo é importante na definição da sexualidade, da profissão futura e no reconhecimento que os pares tĂȘm deles. A covid-19, porém, mudou totalmente o contato com as pessoas. Para eles, o perĂodo da covid-19 foi marcante e trouxe consequĂȘncias.
Cresceu muito o uso da internet, de videogames, houve adição à internet, transtornos associados com a adição à internet. De acordo com Mari, são elementos que jĂĄ vinham aparecendo, e os problemas foram acentuados com a pandemia. Os adolescentes ficaram muito ligados à internet, e veio também a questão do contĂĄgio social. Um exemplo foi a divulgação de notĂcias nas escolas, como massacres, que rolam rapidamente entre os alunos, ou mesmo cópia de movimentos como anorexia nervosa e violĂȘncia. "Esse contĂĄgio muito maior do que nas nossas épocas de mĂdias sociais também traz algo importante em termos de saĂșde mental", afirmou.
Mari destacou ainda a vulnerabilidade dos adolescentes ante o tédio e a solidão. "Antes da pandemia, os dados jĂĄ denotavam uma frequĂȘncia elevada de solidão, que é a porta de entrada para um estado de ansiedade importante, para um estado de depressão. E estamos notando que, nessa população, estĂĄ havendo aumento importante de estados de ansiedade, de depressão e de solidão."
Outra consequĂȘncia da pandemia foi o fechamento das escolas, que levou as crianças à perda de tempo de aprendizado, de leitura e de matemĂĄtica, entre outras disciplinas. "Sabemos que elas tĂȘm um atraso de desenvolvimento nessas ĂĄreas, mas não sabemos o quão recuperĂĄvel ele vai ser", ressaltou Jair Mari.
Para o psiquiatra, isso pode acentuar um impacto no desenvolvimento das crianças, em especial as de classes sociais mais desfavorecidas, de escolas pĂșblicas, que não tĂȘm muito estĂmulo ou condições para continuar estudando no formato online.
Com isso, acentua-se mais um fator de desigualdade social importante no paĂs, e essa desigualdade social estĂĄ fortemente relacionada com transtornos sociais, como ansiedade e depressão. "Não sabemos o impacto que esse atraso trarĂĄ no desenvolvimento das crianças. JĂĄ foi percebido que muitas crianças e adolescentes abandonaram a escola. E, quando não existe inclusão dessa parcela da população, pode haver aumento de transtornos mentais."
Outro grupo vulnerĂĄvel é o dos idosos que, na grande maioria, não tĂȘm domĂnio da internet, nem das novas tecnologias, e ficaram mais afastados das pessoas, reduziram a atividade fĂsica, aumentaram o nĂvel de estresse, de solidão. O professor disse que pode haver grande impacto na vida dessas pessoas, com aumento da solidão e, mesmo de casos de demĂȘncia, por causa da falta de estĂmulos cognitivos, de leitura e de compartilhamento.
Mari mencionou ainda mudanças provocadas pela pandemia nas famĂlias, com aumento de divórcios e construção de novos nĂșcleos familiares, levando os mais velhos a um isolamento maior, que também propicia o desenvolvimento de transtornos mentais.
Na população em geral, hĂĄ os efeitos do vĂrus em si, que traz consequĂȘncia cognitiva importante, a chamada covid longa, que é a perda de paladar, olfato, o impacto que o vĂrus pode ter trazido entre um grupo de pessoas na parte cognitiva, de memória, exigindo reabilitação dessa ĂĄrea, alguns com fadiga intensa e outros com o fenômeno do branco cerebral ou apagão cerebral. "AĂ, a pessoa perde toda a capacidade de processamento da linguagem, de raciocĂnio e também preocupa, porque estĂĄ deixando de exercer sua capacidade funcional, laboral, afetiva. Nós temos aĂ vĂĄrios ingredientes nas crianças, nos adolescentes, nas pessoas adultas e nos idosos que nos levam a imaginar que teremos, sim, uma consequĂȘncia importante na ĂĄrea da saĂșde mental".
Jair Mari destacou que, de positivo, ocorreu a aceitação de que não somos invulnerĂĄveis. "Somos seres humanos vulnerĂĄveis, saĂșde mental faz parte da saĂșde geral e é algo relevante para se cuidar. EstĂĄ se abrindo uma perspectiva de olhar para esses problemas de forma menos preconceituosa, mais inclusiva". Este é o ponto positivo, afirmou.
O que se deve fazer então, questionam as pessoas. É preciso identificar precocemente os problemas, ampliar o treinamento de profissionais capazes de dar o tratamento psicológico necessĂĄrio, expandir a parte de acolhimento, assistĂȘncia a terapias breves, fazer uso benigno das tecnologias, usar a telemedicina, o atendimento online, evitando que as pessoas gastem dinheiro em transporte e beneficiando a população socioeconômica mais vulnerĂĄvel.
Mari ressaltou ainda que a sociedade tem que saber o quanto a desigualdade social influencia nas doenças, porque não foi só uma pandemia, mas o que se chama de uma "sandemia". Ou seja, pessoas com diabetes, obesas, que praticam menos atividades fĂsicas, tendem a ser mais infectadas.
O professor observou que, diferentemente do que ocorre em paĂses desenvolvidos, como a Suécia, onde as pessoas moram sozinhas e não infectam os outros e tĂȘm uma educação mais avançada, no Brasil, as pessoas precisavam sair na pandemia para obter o sustento da famĂlia e, ao voltar para casa, onde vĂĄrias gerações podem estar compartilhando o ambiente, a aceleração do vĂrus foi muito maior.
O professor da Unifesp salientou a necessidade de polĂticas para inclusão de todas as adversidades humanas, desde os transtornos mentais até os problemas de gĂȘnero, de raça, de modo a tornar a sociedade mais inclusiva, oferecendo melhores condições de habitação, saneamento e educação, para reduzir o risco de a pessoa desenvolver transtorno mental. "É preciso entrar com polĂticas eficazes para cuidar dos adolescentes, de modo a evitar comportamentos de contĂĄgio de violĂȘncia, de bullying, de sex tape (gravação de ato sexual), identificar esses problemas e agir."
Mari recomendou também ações para combater o uso de drogas e o tédio na adolescĂȘncia, estimulando nas escolas aulas de arte, como teatro, e de esporte. Ele lembrou também o quanto é importante para uma criança vestir uma camisa e uma meia do time de futebol. Com isso, hĂĄ integração entre as pessoas. Essas iniciativas evitam os problemas emergentes, disse o professor.
No caso dos idosos, Mari sugeriu que se procure saber se estão desenvolvendo uma depressão importante e que se busque a integração destes em redes de saĂșde, promovendo saĂșde e diversão, e cuidar do ambiente. "A pandemia também mostrou o quanto o ambiente é importante. As pandemias surgem por causa desse desequilĂbrio. É importante preservarmos a floresta e buscarmos menos consumo, uma sociedade com consumo responsĂĄvel, com reutilização, a chamada economia circular, e evitar o consumismo. A pandemia nos alertou para vĂĄrias questões futuras que a humanidade deve olhar com mais cuidado", concluiu o professor.
O 39Âș Congresso Brasileiro de Psiquiatria é promovido pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)
*A repórter viajou a convite da Associação Brasileira de Psiquiatria
Edição: NĂĄdia Franco
Fonte: AgĂȘncia Brasil