É comum que a expressão "cuidados paliativos" seja entendida muitas vezes de forma errada, como uma sentença de morte, quando não hĂĄ nada mais a ser feito. Essas formas de se referir a essa assistĂȘncia, tão importante em situações de doenças que ameaçam a continuidade da vida, reduzem a compreensão abrangente que o cuidado permite.
Especialistas ouvidos pela AgĂȘncia Brasil destacam que essa abordagem deveria estar presente desde o momento do diagnóstico de uma doença grave e que uma boa comunicação entre pacientes, médicos e familiares é o melhor caminho para a tomada de decisão nesses processos.
Renata Freitas, diretora do Hospital do Câncer IV, do Instituto Nacional do Câncer (Inca), unidade especializada em cuidados paliativos, avalia que a própria lĂngua portuguesa prejudica o entendimento. "A gente conhece como paliativo aquilo que não tem jeito. Por exemplo: "ele fez só um paliativo, depois vem alguém aqui e conserta". É a nossa ideia do que significa esse termo, mas é uma expressão importada. No exterior, não existe essa conotação de que não hĂĄ nada mais a fazer", explica.
Para Karen Holzbecher, que acompanha a mãe, Amalia, de 86 anos, não foi fĂĄcil receber o encaminhamento para os cuidados paliativos. "Meu coração estava super apertado, porque eu não queria tomar uma decisão e dizer: "eu quero que seja feito isso"", lembrou. A conversa com os profissionais de saĂșde e com a famĂlia ajudaram a entender aquele momento. "Eu pedi a Deus para que iluminasse tudo, mas eu achei que foi a melhor solução. O médico foi muito querido. Ele falou para mim que ela poderia ficar na mesa de cirurgia, além de ter que usar fralda a vida toda."
HĂĄ dois anos, Amalia Holzbecher, diagnosticada em 2019 com câncer no reto, é acompanhada mensalmente pelo Inca na unidade responsĂĄvel pelos cuidados paliativos. "Eu sempre incluo ela nas decisões, em todas. Eu acho que isso faz bem e é muito importante que a pessoa se sinta ouvida. A pessoa não morreu, entendeu?", afirma Karen. Em uma rotina acompanhada pelas filhas, Amalia tem mobilidade com a ajuda de uma bengala. "Eu brinco. Ela diz: "eu queria uma ĂĄgua". Eu falo: "vai lĂĄ na geladeira pegar". Para locomover, né? Ela vai e faz. Quer dizer para o problema que tem, ela estĂĄ maravilhosa", relata.
Em 2002, a Organização Mundial da SaĂșde (OMS) atualizou a definição de cuidados paliativos a partir do conceito surgido em 1990. "Cuidados paliativos consistem na assistĂȘncia promovida por uma equipe multidisciplinar, que visa à melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alĂvio do sofrimento, por meio de identificação precoce, avaliação impecĂĄvel e tratamento de dor e demais sintomas fĂsicos, sociais, psicológicos e espirituais", diz o texto da organização.
O geriatra Toshio Chiba, chefe do Serviço de Cuidados Paliativos do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), destaca que os cuidados paliativos se aplicam desde o diagnóstico, com decisões como a escolha do tratamento, de invasibilidade, sobre o que fazer quando a doença não for passĂvel de tratamento curativo, entre outras. Ele acrescenta que esses cuidados, embora não estejam direcionados à cura, são capazes de conter a progressão da doença e também de permitir conforto e qualidade de vida ao paciente.
"JĂĄ existem dados de que quanto mais precocemente uma equipe de cuidado entrar na assistĂȘncia ao paciente e à sua famĂlia dentro desse cenĂĄrio, dessa linha de cuidado da doença, maior a possibilidade não só de aumentar a qualidade de vida do doente, como também de impacto na sobrevida", explica a diretora do Inca. Ela lembra que o cuidado paliativo estĂĄ diretamente relacionado à decisão compartilhada. "Eu não posso dizer para o outro o que é qualidade de vida para ele".
Nesse sentido, um plano de cuidado busca identificar questões como: quais são os valores do paciente, quais as crenças dele, quais as condições objetivas dele. "Levando-se em consideração que, normalmente, as questões de cognição, de entendimento, acabam piorando com o agravamento da doença é importante que essas conversas sejam iniciadas logo no inĂcio do acompanhamento para que isso seja registrado em prontuĂĄrio e aquilo fique anotado: quais são os desejos daquele paciente", acrescenta Renata.
Chiba lembra que é preciso sensibilidade ao abordar essas questões. "Não precisa ser num evento só, pode ser algo processual ou em etapas, conhecendo a pessoa, conhecendo a famĂlia dessa pessoa para abordar de uma forma adequada e poder ajudar nas decisões. Não para atormentar, falando das duras realidades, e empurrar a decisão para a famĂlia ou para o próprio paciente", alerta o especialista.
Lucas, que acompanha a mãe Alda Oliveira da Conceição, de 76 anos, também atendida no Inca, conta que a sensibilidade dos profissionais foi fundamental para a famĂlia. "Em momento algum eles usaram o termo "terminal" ao se referir ao tratamento da minha mãe. Isso me deixou muito aliviado e ela se sentiu bem mais confortĂĄvel para lidar com a situação", afirma. A doença foi diagnosticada hĂĄ 12 anos e, segundo o filho, vem progredindo, mas hoje a mãe "não se queixa de dores ou muitos incômodos". Ela estĂĄ hĂĄ dois anos em cuidados paliativos e recebe "visitas semanais de profissionais diversos e dedicados".
O médico do Icesp explica que alguns princĂpios ajudam a definir a conduta junto aos pacientes. "Respeito à autonomia, a gente busca fazer com que haja o mĂnimo de malefĂcios das intervenções, evitar tratamentos fĂșteis: "Ah, vamos fazer porque tem no mercado esse exame ou aquele procedimento". Não. Vamos nos basear em evidĂȘncia", pondera.
Para Chiba, no entanto, não se trata de um cardĂĄpio de fast food a ser apresentado pelos profissionais para que a famĂlia decida. "[Trata-se] de escolher o recurso adequado para propiciar qualidade de vida ao paciente por meioi de uma comunicação bem adequada e decidir de forma proativa junto com os familiares".
Ele reforça a importância de uma boa comunicação. "Não é empurrar para os familiares só porque é direito deles ou do paciente decidir. A gente precisa ter uma conversa suficientemente esclarecedora para tentar fazer o melhor e que seja adequada para aquela situação personalizada, não dĂĄ para colocar baseada em conduta médica", diz.
O geriatra lamenta que essa abordagem ainda seja incipiente. "Todo mundo tem alguma história para contar, na UTI ou no pronto-socorro, em que a gente leva os familiares e não é ouvido, e vamos adotando as condutas do jeito que não era esperado ou compreendido. O processo de comunicação da doença, ou da fase aguda de uma doença que necessita dessas condutas, como pronto-atendimento, a UTI ou uma enfermaria, estĂĄ, muitas vezes, desprovida dessa atenção, que chamamos de cuidados paliativos".
Renata reforça que os cuidados são feitos por equipe voltada para uma abordagem multidimensional. "Acreditando que não existem só os aspectos de sofrimento fĂsico relacionados àquela doença, hĂĄ toda uma dimensão psicológica, espiritual, social que vem junto com as dimensões fĂsicas daquele sofrimento e que essa abordagem deve ser feita por uma equipe multiprofissional desde o diagnóstico".
De acordo com a médica, entre as pessoas envolvidas estão médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, psicólogo, assistente social, fisioterapeuta, nutricionista, fonoaudiólogo, farmacĂȘutico, o pessoal de capelania, voluntĂĄrios e o pessoal administrativo.
Diante das condições de cada serviço, ela ressalta que hĂĄ uma equipe mĂnima. "Seria médico, enfermeiro, psicólogo e um assistente social, mas o ideal é que os serviços tenham acesso a esses diversos profissionais para que a atenção seja realmente integral", reforça.
Segundo Renata, existem basicamente trĂȘs formatos para os cuidados paliativos. "O integrado é quando o grupo de cuidado paliativo entra com a equipe que, dentro da oncologia, a gente chama de terapias modificadoras da doença, que são a intervenção cirĂșrgica, a radioterapia, a quimioterapia. A equipe que estĂĄ fazendo tratamento da doença oncológica atua junto com a de cuidado paliativo desde o diagnóstico".
Em relação ao formato da oferta precoce, a OMS orienta que ele seja oferecido até oito semanas do diagnóstico. "VocĂȘ tem ali um perĂodo para dar ao paciente acesso à equipe de cuidado paliativo também", esclarece.
Existe ainda a oferta baseada na necessidade assistencial, que considera o fato de que muitos dos serviços não vão ter equipe suficiente para cuidar das pessoas desde o inĂcio. Esses grupos, então, organizam indicadores a partir dos sintomas. Os doentes com alta demanda são encaminhados aos cuidados paliativos, e aqueles com poucos sintomas são tratados pela equipe generalista.
Os pacientes admitidos no Inca, no Rio de Janeiro, podem ser atendidos em trĂȘs unidades de acordo com a topografia do tumor. "O HC3, por exemplo, é a unidade que cuida de pacientes com câncer de mama, o HC2 a unidade que cuida de vĂtimas de câncer ginecológico e o HC1, que fica na Praça da Cruz Vermelha, é o que contém mais clĂnicas, cabeça e pescoço, tórax e abdômen", diz a diretora.
O paciente é tratado pela equipe de oncologia e também recebe suporte multiprofissional. Quando não são mais aplicĂĄveis terapias modificadoras da doença, ele é encaminhado para o HC 4. "Não existe mais benefĂcio de se manter aquela terapia, seja quimioterapia ou novos procedimentos cirĂșrgicos, então ele é encaminhado à equipe especializada em cuidado paliativo, que fica no Hospital do Câncer 4."
Ao ser admitido no HC 4, é avaliada a funcionalidade do paciente, por exemplo se ele tem mobilidade, para decidir se irĂĄ ao hospital para consultas ambulatoriais ou se terĂĄ uma equipe de assistĂȘncia domiciliar. "No momento em que, durante esse acompanhamento, ele tem algum agravamento da situação clĂnica ou algum sintoma mal controlado e a equipe perceba que não vai conseguir manejar isso pelas consultas do ambulatório ou pela própria consulta domiciliar é sugerido então que seja internado", explica Renata.
Após os ajustes medicamentosos, o paciente retorna à assistĂȘncia de origem, ambulatorial ou domiciliar. "É normal que um paciente inicie o acompanhamento no ambulatório e depois seja encaminhado à assistĂȘncia domiciliar, conforme seu estado ao longo da doença", acrescenta. A internação hospitalar também é um modelo assistencial para pacientes que estejam em fim de vida e que tenham manifestado esse desejo, ou por meio da demanda familiar. "A gente faz assistĂȘncia domiciliar em fim de vida também no domicĂlio", diz Renata.
Edição: Graça Adjuto
Fonte: AgĂȘncia Brasil