Antes que sanitaristas como Vital Brazil e Oswaldo Cruz liderassem mudanças no cenĂĄrio da saĂșde pĂșblica no Brasil, no final do século 19 e inĂcio do século 20, o paĂs tinha uma fama assustadora no exterior: "TĂșmulo de estrangeiros". O motivo era a enorme quantidade de doenças infecciosas que incidiam de forma epidĂȘmica sobre sua população, causando milhares de vĂtimas.
Entre elas, uma das mais temidas era a febre amarela urbana, arbovirose cuja letalidade ainda hoje pode beirar os 50% em casos graves. Somente na capital federal da época, o Rio de Janeiro, a doença matava mais de mil pessoas por ano no inĂcio do século 20.
Os esforços para combater essa doença incluĂram uma caça aos mosquitos e fizeram com que ela fosse eliminada em 1942. O que trouxe maior resultado para manter essa conquista, porém, foi a vacinação, desenvolvida em 1937 e disponĂvel no calendĂĄrio infantil do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que completa 50 anos em 18 de setembro. A indicação para as aplicações é aos 9 meses e aos 4 anos de idade. Acima dos 5 anos, a recomendação é de apenas uma dose.
A vacina contra a febre amarela utilizada pela rede pĂșblica é produzida pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) e também pela farmacĂȘutica Sanofi Pasteur, que fornece tanto para o PNI quanto para as clĂnicas privadas. Segundo a Sociedade Brasileira de Imunizações, as duas tĂȘm perfis de segurança e eficĂĄcia semelhantes, estimados em mais de 95% para maiores de 2 anos.
Apesar do sucesso no caso da febre amarela urbana, a doença em sua forma silvestre não pode ser erradicada. O vĂrus causador da febre amarela não depende dos seres humanos para continuar existindo - ele infecta primatas e outros mamĂferos em florestas, onde é transmitido pelo mosquito Haemagogus sabethes. Esses mosquitos também picam humanos que entram nas matas, e o risco é que, com o retorno dessas pessoas às cidades, elas sejam picadas por mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus, que podem fazer o vĂrus voltar a circular em ĂĄreas urbanas.
A coordenadora da Assessoria ClĂnica de Bio-Manguinhos/Fiocruz, Lurdinha Maia, ressalta que, por esse motivo, é preciso que a cobertura vacinal contra a doença seja mantida em todo o paĂs, uma vez que o ecoturismo, a pesca, o desmatamento e outros fatores tĂȘm aumentado o contato entre o ser humano e os mosquitos que transmitem a febre amarela silvestre.
"O Brasil é um paĂs endĂȘmico. Isso significa que a gente não vai acabar com a febre amarela. Ela estĂĄ nas matas. Em 1942, a gente acabou com a febre amarela urbana, mas ainda é um risco, principalmente porque hoje hĂĄ muitas entradas nas matas", afirma.
"Anteriormente, o Programa Nacional de Imunizações preconizava a vacinação em vĂĄrios estados e dizia que não era obrigatório no Nordeste. Mas, o PNI jĂĄ atualizou o calendĂĄrio de vacinação e todo o Brasil tem a recomendação de ser vacinado contra a febre amarela."
Ser um paĂs endĂȘmico faz com que alguns paĂses só permitam a entrada de viajantes brasileiros que apresentem o Certificado Internacional de Vacinação e Profilaxia (CIVP), com registro de dose aplicada no mĂnimo dez dias antes da viagem.
O vĂrus da febre amarela demora de trĂȘs a seis dias incubado no corpo. Quando a infecção gera sintomas, os mais comuns são febre, dores musculares com dor lombar proeminente, dor de cabeça, perda de apetite, nĂĄusea ou vômito. A maioria das pessoas melhora em até quatro dias.
Uma pequena parte dos pacientes, porém, evolui para um segundo estĂĄgio da doença, 24 horas após essa melhora. A febre alta retorna, e a infecção afeta o fĂgado e os rins. Por isso, um sintoma comum nessa fase é a icterĂcia ("amarelamento" da pele e dos olhos), urina escura e dores abdominais com vômitos.
A letalidade entre esses pacientes é elevada, e metade dos que apresentam essas complicações morre em até dez dias. A doença evolui até causar hemorragias graves, com sangramentos a partir da boca, nariz, olhos ou estômago.
Uma dificuldade para os serviços de saĂșde é diagnosticar a febre amarela em seus estĂĄgios iniciais. É comum que seja confundida com malĂĄria, leptospirose, hepatite viral, ou outras febres hemorrĂĄgicas, como a dengue.
Por todos esses motivos, a infectologista Eliana Bicudo destaca que a doença é uma ameaça de saĂșde pĂșblica grave, e que a vacinação precisa ser objeto de atenção da população.
"Qualquer pessoa não imunizada estĂĄ ameaçada pela febre amarela, porque ela tem alta letalidade. Um nĂșmero bem grande de pacientes vem a óbito."
A vacina da febre amarela é eficaz e segura, mas utiliza a tecnologia do vĂrus atenuado, o que significa que restringe seu uso às pessoas com boa capacidade imunológica. O Ministério da SaĂșde contraindica essa vacina para: crianças menores de 9 meses de idade; mulheres amamentando crianças menores de 6 meses de idade; pessoas com alergia grave ao ovo; pessoas que vivem com HIV e que tĂȘm contagem de células CD4 menor que 350; pessoas em tratamento com quimioterapia/ radioterapia; e pessoas submetidas a tratamento com imunossupressores (que diminuem a defesa do corpo).
Caso essas pessoas vivam ou precisem se deslocar para ĂĄreas de maior risco de transmissão, é necessĂĄrio que profissionais de saĂșde façam uma avaliação de risco-benefĂcio, uma vez que as complicações ao adoecer podem ser ainda mais graves. Essa avaliação também deve ser feita para a vacinação de pessoas com 60 anos ou mais contra a doença.
"A vacina de febre amarela é um exemplo clĂĄssico de como uma vacina pode controlar uma doença. Esse é um dado histórico. Até 2017, a gente entendia que a febre amarela no Brasil estava restrita a algumas regiões. Mas tivemos alguns surtos relacionados à febre amarela silvestre associados a parques na periferia de São Paulo. Ao entrarem naqueles parques, os homens contraĂram a febre amarela", descreve a infectologista.
"A partir desse evento, a gente entende que o Brasil é um paĂs endĂȘmico e que a imunização não deve ser só em ĂĄreas como o Centro-Oeste ou a região amazônica. O Programa Nacional de Imunizações incluiu para todo o Brasil a vacina da febre amarela no primeiro ano de vida."
Além da vacinação, a prevenção da febre amarela deve contar com os esforços para conter outras arboviroses, como a dengue e a zika. Deve-se evitar que ĂĄgua parada fique exposta em lugares pĂșblicos, casas e estabelecimentos empresariais, para que os mosquitos vetores desses vĂrus não a utilizem como criadouro.
Edição: Juliana Andrade
Fonte: AgĂȘncia Brasil